O Voto Auditável e o sistema eleitoral brasileiro

Voto Auditável

“DECRETO Nº 19.398 DE 11 DE NOVEMBRO DE 1930.

Institue o Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil, e dá outras providencias

O Chefe do Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil

DECRETA:

Art. 1º O Governo Provisório exercerá discricionariamente, em toda sua plenitude, as funções e atribuições, não só do Poder Executivo, como tambem do Poder Legislativo, até que, eleita a Assembléia Constituinte, estabeleça esta a reorganização constitucional do país;”

 

Em 1930, após fracassar em todas as tentativas imagináveis de tentar acabar com as fraudes nas urnas e a “democracia de mentirinha” no Brasil, o Governo Federal findou por afastar todos os políticos eleitos. O Governo Provisório exerceria a partir de então todas as atividades Executivas e Legislativas, isso apenas até a nova constituição. Na luta pelo aperfeiçoamento último de nosso sistema eleitoral, só faltava avançar sobre um ponto, copiar dos países desenvolvidos três características ainda não aplicadas no Brasil: voto obrigatório, voto proporcional e voto das mulheres.

Lideranças políticas de todo o país se uniram em uma coalização de partidos e defenderam uma “profunda reforma do processo eleitoral”, incluindo a adoção de voto secreto e criação da Justiça Eleitoral para punir possíveis fraudes não previstas pelo trabalho da comissão[1]. No livro “Eleições no Brasil”, o professor Jairo Nicolau faz um belo apanhado do resultado imediato:

“O novo código promoveu uma série de mudanças nas instituições eleitorais do país, entre as quais destacam-se: a extensão do direito de voto às mulheres, a criação da Justiça Eleitoral, a adoção do voto secreto e da representação proporcional e a exigência de que partidos e candidatos fossem registrados antes do dia das eleições. Para os observadores da época, a nova legislação conseguiu promover eleições limpas, com fraudes circunscritas apenas a determinadas áreas do país.”[2]

Sim, na eleição imediatamente após a criação do primeiro Código Eleitoral (1932) e da Justiça do Trabalho, as eleições sofreram fraudes localizadas, na esfera municipal e não estadual ou federal, porém em 1934 foi promulgada uma nova Constituição com toda uma nova diretriz para o processo eleitoral de cargos diversos, incluindo a eleição para Presidência da República. No dia seguinte à promulgação, Getúlio Vargas foi eleito pela Assembleia Constituinte com a promessa de convocar novas eleições quatro meses antes do fim de seu mandato, mas em novembro de 1937 aplicou um golpe de Estado e iniciou-se o que entrou para a história do Brasil como Estado Novo.

Essa breve rememoração de nossa história de há um século serve apenas para ilustrarmos o que estamos vivendo hoje, no Brasil. É de conhecimento de todos nós que o brasileiro não apenas não conhece a sua própria história de família, como desconhece a História do Brasil e ainda carrega a maldição (com um certo orgulho, é verdade) de não gostar de ler. Quem não se lembra da célebre frase do ex-presidiário e autointitulado pré-candidato a Presidente da República em 2022, Lula: “Eu não gosto de ler, eu tenho preguiça de ler.” No Brasil é assim, quem trabalha “não tem tempo pra essas coisas”. E assim, de esquecimento em esquecimento, o povo brasileiro repete não apenas seus erros como suas vãs esperanças.

O presidente Jair Bolsonaro convenceu toda a sua base de seis ou sete deputados, e essa base convenceu a militância de redes sociais de que, aprovando o Voto Auditável para 2022, Bolsonaro vencerá novamente, e desta vez… Desta vez! Ele quebrará o sistema nefasto do Brasil e sanará os males de nossa viciada administração pública – o que ele só não pôde fazer nesse primeiro mandato porque a administração pública está viciada.

Pois é…

Acontece que a ideia de que o Voto Impresso — nome que foi substituído por Voto Auditável, uma vez que o voto impresso contraria o voto secreto – será a solução contra a fraude é mais uma daquelas ideias de 1930, de que a fraude humana pode ser vencida por uma ideia, um projeto, uma lei. Essa gente até hoje não leu o Pentateuco, tivessem lido descobririam que nem Moisés acabou com o adultério. Nem o mármore do inferno é capaz de apagar o fogo da paixão dos amantes. Ardem, mas amam. E como ardem!

No mundo em que vivemos, dispomos de duas ferramentas contra o crime: tecnologia e código penal. Com a tecnologia você tenta se colocar sempre à frente dos criminosos, pois parte-se da ideia de que o Estado tem mais recursos (obrigado contribuinte), logo estará sempre um passo à frente em discussões tecnológicas uma vez que elas custam caro. Com o Código Penal você não evita os crimes, mas após serem cometidos você pune o contraventor e assim retira-o de circulação e executa um processo pedagógico para com o cidadão de bem, que não cometeu crime mas viu a punição que está à porta, caso venha a cometer um dia.

O Voto Auditável de Jair Bolsonaro além de ser impossível de ser concretizado no Brasil, não coíbe a fraude tecnologicamente e não pune o contraventor pois não é penal. Não coíbe a fraude eleitoral porque ela, a fraude, não se dá na urna eletrônica; falo sobre isso há dois anos e incluí argumentos no meu livro “Fraude – a fragmentação da identidade nacional por meio do processo democrático”[3]; as fraudes eleitorais estão no processo eleitoral, e não na votação em urna. O início desse texto narra diversos problemas eleitorais que assolaram o sufrágio no Brasil desde o império, e mesmo nesse intervalo anterior ao Estado Novo, vemos que ainda que fossem aplicadas à perfeição as ideias novas trazidas do exterior, uma canetada militar colocaria tudo por terra (como colocou o atarracado Vargas)[4]. A fraude se dá no processo eleitoral, e o nome “processo” aqui evidencia algo que se prolonga no tempo, não um intervalo de minutos na cabine de votação vigiado pelos mesários. Nesse intervalo prolongado de tempo que no Brasil dura cerca de um ano e meio, diversas etapas transcorrem: criação de partidos; convenções partidárias; alistamento de candidatos; campanha política de rua; campanha de rádio e TV; prestação de contas; votação em urna. Todas essas etapas do processo eleitoral, repito, todas as etapas são fraudadas. Até mesmo a ideia de combater a fraude na urna é uma fraude, uma vez que o “erro” não se dá no momento em que o eleitor aperta os números de seu candidato e tecla ENTRA, mas sim na contabilização dos votos que nem mesmo se dá naquele urna em que o eleitor colocou seus sufragiantes dedinhos, nem mesmo no TRE que está há algumas dezenas ou centenas de quilômetros de si mas em Brasília, em uma sala secreta no Tribunal Superior Eleitoral à qual apenas o Presidente do Tribunal e pouquíssimos assessores de sua extrema confiança podem entrar (após passarem por vigilância de câmera e porta com fechadura biométrica).

Com relação ao aspecto penal da fraude eleitoral, no Brasil prisões são raríssimas! Há mais de dez anos o irmão do PC Farias foi preso com mais seis pessoas por fraude eleitoral[5], isso em um esquema de fraude local em Alagoas. Casos estaduais (quiçá nacionais) caem no famoso “não dá em nada”. Tudo poderia ser diferente se o Presidente Bolsonaro passasse de bravata a ato, e materializasse o que anunciou em março de 2020 quando afirmou: “Eu acredito que, pelas provas que tenho em minhas mãos, que vou mostrar brevemente, eu tinha sido, eu fui eleito no primeiro turno”[6], mas até agora, nada. Tendo provas de fraude, poderia implodir o sistema eleitoral, mas será que ele gostaria de fazê-lo? Como na política tudo é calculado não por moral, ética ou patriotismo, mas sim por cálculo eleitoral, será que é vantajoso para Bolsonaro “implodir o sistema”? Ou não seria melhor deixar o sistema como está e partir para 2022 para “evitar a volta do PT”?

Não escrevo essas palavras com o objetivo de alcançar os ouvidos de agentes políticos, esses têm ouvidos moucos, são como o rei Acabe, que só gosta de ouvir coisas boas[7]. O que desejo é alcançar os ouvidos do eleitor brasileiro, que cansado de tanto sofrimento nesse país miserável está acreditando no canto da sereia unicamente por ser belo, diferente da desgraçada risada despótica que escutamos desde a partida de Dom Pedro II, no fim do séc. XIX. Essa ideia de “Voto Auditável” é a ideia mais idiota dos últimos tempos, sendo digna de um projeto de lei do baixo clero da REDE em união ao Psol.

==*==

Ao longo do texto eu disse que o voto impresso é impossível de ser aplicado no Brasil, certamente muitos leitores marcaram essa parte para dizer que discordam. Provo meu ponto:

CAPÍTULO I

DO VOTO SECRETO

     Art. 57. Resguarda o sigilo do voto um dos processos mencionados abaixo.

2) uso das máquinas de votar, regulado oportunamente pelo Tribunal Superior, de acôrdo com o regime dêste Código. – CÓDIGO ELEITORAL DE 1932

Sabe o que significa esse texto acima? Significa que desde o primeiro código eleitoral brasileiro, o sistema eleitoral sempre objetivou a votação automatizada, motivado pela “lógica científica” de que quanto menos contato humano, menos erros. A urna eletrônica é a realização do sonho das instituições desse país, um verdadeiro símbolo nacional para cada senador e cada deputado no Congresso. Retirar esse “direito adquirido” de nossos amados congressistas é mais difícil que tirar-lhes as verbas de gabinete.

Outra, o próprio STF já declarou por diversas vezes que o voto impresso é inconstitucional, não apenas violando o sigilo do voto como também encarecendo as eleições por ser um processo adicional e não substitutivo[8]. Propor a um país que faz déficit de quase 200 bilhões/ano a adicionar mais um processo nacional, chega a ser engraçado de tão idiota.

Terceiro argumento para abrir os ouvidos e olhos de quem me lê: a partir do momento em que se inaugurar um sistema de votações auditável no Brasil, preparem-se para sempre ver o perdedor exigir apuração, processo que levará meses (como levou nos Estados Unidos na última eleição) e abrindo brechas, aí sim, para novas fraudes dessa vez judiciais como acabamos de ver o STF anulando condenações de três instâncias, por unanimidade de todos os julgadores, com relação ao ex-presidente Lula.

Enfim, após ler alguns livros sobre nosso sistema eleitoral eu afirmo, o único e verdadeiro problema de nosso sistema eleitoral é ele existir.


[1] CABRAL. J. O código eleitoral da República dos Estados Unidos do Brasil, 1932.

[2] NICOLAU. J. Eleições no Brasil, 2012.

[3] https://www.amazon.com.br/Fraude-fragmenta%C3%A7%C3%A3o-identidade-nacional-democr%C3%A1tico-ebook/dp/B091S2XYXH

[4] Sobre o necessário para pôr fim às intervenções militares no processo democrático brasileiro, consultar Interpretação da Realidade Brasileira, de João Camilo de Oliveira Torres, 1973.

[5] https://correio-forense.jusbrasil.com.br/noticias/144203/juiz-eleitoral-e-preso-por-suspeita-de-conivencia-com-fraude-em-alagoas

[6] https://valor.globo.com/politica/noticia/2020/03/09/pela-1-vez-bolsonaro-diz-ter-provas-de-fraude-nas-eleies-de-2018-mas-no-as-apresenta.ghtml

[7] “E o rei de Israel disse a Josafá: Há ainda um homem, por quem podemos consultar ao SENHOR; mas eu o odeio; porque ele nunca profetiza o bem para mim, mas sempre o mal; este é Micaías.” – II Cr 18:7

[8] https://www.migalhas.com.br/quentes/333117/gilmar-mendes-entende-que-impressao-de-voto-eletronico-e-inconstitucional

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