O diagnóstico do Brasil

Jean-Baptiste Debret: Interior de uma casa cigana

Qual a solução para o Brasil? Essa é uma pergunta que não tem resposta fixa ao longo do tempo, sendo necessário detectar primeiro que a formulação da pergunta “qual a solução?” carece de um problema, solução “de que” ou “para que”. Remediar antes de diagnosticar é medida inconsequente, jamais sendo adotada ainda que o diagnóstico seja feito às pressas, por motivos como falta de tempo ou alto risco de morte do paciente. Não é o caso do Brasil, definitivamente não é o caso… estamos há 500 anos resolvendo “a ordem do dia” sem nunca termos dado um passo realmente significativo por iniciativa popular, tendo sido os últimos passos relevantes no destino da nação tomados por D. Pedro I e seu sucessor, D. Pedro II.

Um diagnóstico preciso do paciente Brasil não precisa de novas análises e muito menos de novas tecnologias para exame, pode ser feito com sucesso elevando-se contra a luz as radiografias já tiradas por nossos grandes médicos do passado, doutores como Aluísio Azevedo, Antonio Paim e Ariano Suassuna, isso para ficar apenas na primeira letra do alfabeto pois seguindo adiante teríamos Bernardo de Vasconcelos e nos perderíamos em um rol de glórias passadas tal qual um saudosista cidadão romano. O importante aqui porém é outro fim, a ciência “do que” ou “para que” necessitamos de tratamento. Já tivemos como problema nacional a necessidade de independência nacional, a escravidão, a ditadura e tantos outros grandes problemas nacionais. Hoje, após eras de conquistas sociais alcançamos a nossa pax romana, podendo finalmente colocar em execução tão esperado plano, adiado apenas pela falta de ocasião para tal.

É estranho estudar a história do Brasil e ver que se lutamos por uma carga de impostos mais justa, pela libertação dos escravos e até mesmo pela libertação dos livres ao longo do governo militar, hoje não temos nenhum problema oficial a ser combatido e, mesmo assim, não há rumo a seguir. O Brasil encontra-se inesperadamente no pós-tempestade e, na calmaria do mar não se sabe que rumo tomar. Qual o problema do Brasil hoje? O que nos fez passar as tempestades e agora não saber sequer o inimigo a ser combatido? Eu tenho minha proposta de diagnóstico: o problema é mesmo esse, a falta de conhecimento.

O Brasil não conhece sua história, e por isso mal vive o presente e não tem vislumbre do futuro. A falta de conhecimento fez com que o Brasil ultrapassasse sua última barreira de grande vulto, o impeachment da então presidente Dilma Rousseff, e não soubesse o que fazer então.

Um parêntese: aqui, ignoro por completo a pandemia de COVID-19 em que estamos absortos pois esse não é problema nacional, mas mundial. Sua solução não passa pelas mãos do Brasil, esse jogo é jogado no hemisfério norte.

É na sociedade brasileira que hoje se encontra a principal lacuna na história que é escrita minuto a minuto, dia após dia em nosso país. A rédea corre solta e, como nunca (digo literalmente, pensando em cada era de nosso país) foi entregue ao poder público. A confiança popular manifesta nas urnas eletrônicas em 2018 dispôs, inacreditavelmente, o país mais uma vez nas mãos de um homem, o “ditador eleito” nas palavras de João Camilo (presença certa na letra “J” de nossa lista por fazer). Escreveu o historiador itabirense: “[…]o regime político ideal, na opinião do brasileiro médio, seria o de um presidente eleito, um homem popular, como Jânio Quadros, Getúlio Vargas, Juscelino Kubitscheck, Carlos Lacerda, mas dotado de todos os poderes: um ditador eleito. Não haveria instituições, um homem de carne e osso, apenas.”[1] Essa plena entrega surpreende por ter o brasileiro saído, no pós-Dilma, de um regime político opressor, que por pouco – e não por falta de tentativas – não destruiu o sistema político brasileiro com o minucioso esquema de compra de apoio parlamentar à base de dinheiro público, o mensalão/petrolão, e mesmo após esse trauma recente, o pagador de impostos conseguiu inverter o ônus do sistema político para um partido político, foi assim que a política brasileira foi salva mediante o sacrifício vivo de uma única sigla, o PT.

Sim, o Partido dos Trabalhadores sozinho levou para o sheol toda a negra alma de nossa política corrupta. Até mesmo o PP, atual Progressistas, que foi o partido político mais enrolado na finada Operação Lava-Jato foi poupado, e o MDB não apenas se safou como passou a dar as cartas em Brasília de imediato à saída da mulher sapiens. É chocante como a realidade brasileira é forjada na amnésia anterógrada, aquela que acomete o portador de esquecimento quanto ao passado recente. Guardamos a dívida histórica da escravidão e o pavor da censura de imprensa do governo militar, mas esquecemos a podridão do sistema corrupto e corruptor que dominou o Brasil desde a redemocratização e chegou a diabólica excelência em 2003. O desconhecimento quanto ao próprio corpo castiga o cidadão brasileiro e faz com que cada membro desse país trabalhe para sua destruição; simultaneamente a essa medonha autodestruição, trabalha-se incansavelmente em prol de uma invasão bárbara – parafraseando outro grande nome brasileiro, o filósofo Mário Ferreira dos Santos, que dizia que, no Brasil, os bárbaros não se encontram mais fora, mas intramuros[2].

Vê-se que o diagnóstico preciso de nosso corpo pátrio vai muito além do jargão popular “a solução pro Brasil é a educação”. Nosso problema é falta não apenas de educação, o aculturamento e domínio de método para o estudo; carecemos também de conhecimento fundamental quanto a quem somos e onde estamos. Mais uma vez estamos entregues nas mãos do sistema político, que utilizou Jair Bolsonaro para salvar a política brasileira e após um ano, um único aninho, voltou com força total e dominou a República utilizando-se de sua extensa rede de cargos e funções, todas ocupadas hoje pelos mesmos nomes de sempre, o fisiológico centrão. A diferença é que em 2021 temos um algo novo, pela primeira vez o Estado foi entregue ao sistema político e ninguém se opõe. A mídia é a namoradinha do centro; o povo sorri para nomes como Ciro Nogueira e Arthur Lira; o bolsonarismo não apenas faz vistas grossas para o Fábio Faria como até mesmo o defende nas redes sociais; e o mais chocante é que até a esquerda hoje é centro, lançando Lula nos holofotes de blazer aberto e camisa social branca, passada e sem gravata – que lhe pareceria forçosa por demais. E assim temos o centrão, o velho centrão de Valdemar Costa Neto e Rogério Rosso como o mais novo agente patriota brasileiro — se veste um jaleco vem feito um médico pronto para diagnosticar e curar o Brasil. O único problema é que, para o Centrão, o mal do Brasil é o excesso de democracia.

 


[1] TORRES. J. C. Interpretação da Realidade Brasileira. Edições Câmara. Brasília, 2017.

[2] A expressão “bárbaros intramuros” é utilizada por Mário Ferreira dos Santos, em sua obra Invasão Vertical dos Bárbaros.

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