Pode ser tudo mentira

No jornal Estadão acaba de ser publicado um texto intitulado “Elis Regina e a inteligência artificial: ‘Não podemos mais acreditar no que os olhos veem'”. É um comentário (mais um) sobre a Inteligência Artificial enquanto a Inteligência Artificial não vem, nada além disso.

Pois… a Inteligência Artifical nos traz mais uma confirmação de que o futuro é bem menos empolgante do que Asimov, Huxley e Cameron imaginaram. O século XXI chegou e o Exterminador do Futuro é, na verdade, a Alexa que, ao invés de fazer uma revolução toca as músicas do Spotify; e o Admirável Mundo Novo é tão idiota que, ao invés de carros voadores temos uma Nova Kombi.

A tecnologia faz ilusões menos convincentes que as mágicas executadas por David Copperfield na década de 90 – e menos empolgantes que as revelações do Mister M. O resultado da temível I.A. é, ao fim e ao cabo, revelar que agora é necessário se precaver porque o que está diante de seus olhos pode não ter existido – em outras palavras: podem existir realidades ausentes de fatos, o que os escolásticos chamavam de “realidade hipostasiada”.

Uma previsão dos ficcionistas não deixou de se cumprir: estamos estupefatos com o futuro [deles]. O presente mostra-se inacreditavelmente entediante. Quem poderia imaginar a morte da Comédia? A transformação do Comércio em compras de quinquilharias chinesas? A substituição das especiarias por ‘sabores’, ‘corantes’ e toda sorte de sintéticos? A epidemia de descrença no theos? Nem ficcionistas nem pessimistas sonhariam com tamanha chatice! O homem foi reduzido a contribuinte, o amor a sexo e a Política em jogos de poder que não geram mais nem mesmo grandes tiranos, mas apenas pequenos corruptos que abastecem corruptos ainda menores para que no fim todos comam meia dúzia de lagostas e tomem outra meia dúzia de Chandon.

Se a Inteligência Artificial entregar ao mundo a desconfiança terá realizado um grande feito, o mais inesperado deles. Devolverá ao mundo a desconfiança tal qual a Caixa de Pandora que, ao ser aberta, libertou Apate, o espírito do engano e da fraude fazendo com que todos ficassem alertas e saíssem do estado de indiferença passando, ato contínuo, a analisar cada visão.

Não seria de se espantar um conclusão de capítulo com tamanho ridículo: após um século inteiro de Guerra, um século de Economia para reerguer o mundo das ruínas e o pagador de impostos percebendo que é ele soldado e contribuinte. Tudo o que o homem comum mais detesta é, no fundo, ele mesmo; todas as previsões de futuro que fez não se concluíram, numa demonstração de que ninguém conhece tão mal a si mesmo como o homem. Terminará o personagem principal ciente de que é assassino, escravo e idiota, vendo diante de si que não resta salvação se não o fim de sua própria natureza e um recomeço absoluto. Esse é o roteiro mítico do renascimento que vemos de Moisés a Guimarães Rosa, explanado por Kierkegaard com as palavras: “o real é o virtual impotente e destruído”.

Que o robô dos ficionistas destrua a falsidade do homem moderno e retorne-o à realidade; então constataremos como na mensagem do Apocalipse:

“Porquanto dizes: rico sou, e estou enriquecido, e de nada tenho falta; e não sabes que és um coitado, e miserável, e pobre, e cego, e nu;” – Ap 3.17

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