A música na Igreja ao longo dos séculos

Nenhum ponto da liturgia cristã causa mais controvérsias que a Adoração. Desde Ambrósio que no século IV inseriu o canto congregacional no culto a Deus até os dias atuais, a música tem causado constante debate e a causa é fácil de detectar: a música é uma manifestação cultural, não uma questão doutrinária.

Não há uniformidade extratemporal na manifestação cultural, por isso é óbvio haver discrepância entre o canto de uma comunidade egípcia e o de uma comunidade árabe, ambas do século II a.C; assim como de uma comunidade coreana e uma colombiana do XXI. Porém, na liturgia cristã atual há um elemento que potencializou a problematização natural que a música apresenta aos cristãos: secularização.

A partir da década de 60 do século passado a Igreja foi afetada pelo movimento carismático, uma onda que varreu os Estados Unidos e atingiu não apenas a América, mas imediatamente refletiu-se na Europa. Em apenas uma década o cristianismo passou a entender que a relação entre o homem e Deus precisa ir além do aspecto ritualístico, passando a ser uma relação empírica, pessoal e personalizada; surgia a expressão “ter uma experiência com Deus”. De lá pra cá a ação da Igreja nas comunidades locais tem sido conclamar as pessoas a se relacionarem com Deus, e como chamado a esse relacionamento o apelo cristão que antes tinha foco na conversão (metanoia) passou a mirar a relação pessoal, ao que a palavra “amor” tornou-se o centro da pregação evangelística.

Em um mundo de abandono, traumas, famílias destruídas e divórcio, o convite ao homem moderno para que esse venha “ter uma experiência com o Pai”, “sentir o Amor de Deus”, e “ser consolado pelo Espírito” não apenas traz uma mensagem espiritual, mas supre (propõe-se, ao menos) também uma carência humana. Cabe deixar aqui a declaração de que Nosso Pai celestial realmente se relaciona com seus filhos, assim como Ele não apenas ama, mas é Ele mesmo Amor, e que consola os seus por meio de seu Espírito; isso é parte do verdadeiro Evangelho e não pode ser esquecido jamais. Nesse mundo onde a demanda gerada na sociedade é de cunho emocional e sentimental, o encontro congregacional passou a ser não apenas um momento de culto à divindade, Jesus Cristo, mas também um momento de tratamento psico-social, e é aí que entra a remodelação da música na liturgia.

A hinologia ambrosiana que convidava a Igreja a celebrar o Redentor com hinos como:

“Vem, tu, Redentor da terra,
e manifeste teu nascimento virginal:
que todas as gerações, prostadas, te adorem;
tal nascimento convém ao Deus do Universo.” — Ambrósio, Come, thou Redeemer of the earth and manifest Thy virgin birth

 

Avançou no tempo e cantou na Reforma Protestante:

“Defende-nos Jesus
O que venceu na cruz
Senhor dos altos céus
E sendo o próprio Deus
Triunfa na batalha.” — Lutero, Castelo Forte

 

A renovação da hinologia iniciou-se no movimento carismático do século XX, e foi concluída com o abandono do Hinário — o livro de cânticos utilizado em diferentes denominações com o objetivo de unir a arte — na pauta musical — com a devoção do adorador — na letra a ser cantada. Desde então, o hinário foi substituído pelo retroprojetor, com a exclusão da pauta musical e a adoção de letras de relação afetiva, fáceis de cantar como:

“Não quero ser
Só apenas o Teu servo
Quero atrair Teu olhar de amor,
Senhor Eu venho a Ti
Como um filho que Te ama
Tudo o que eu quero
É estar perto de Ti.” — Aline Barros, Casa do Pai

 

Façamos um ponto aqui para que possamos abordar outro tema correlacionado: a musicalidade.

Com a humanização do hino (hoje chamado simplesmente de “louvor”) não apenas a letra foi alterada mas também a melodia. Imagine cantar a alma puritana do XVI com um grupo pop do XXI (!?). Para fazer o alinhamento necessário, a música (melodia) foi separada da letra e, considerada à parte, perdeu o aspecto de distinção entre o sacro e o profano uma vez que não existe “ritmo sacro” e “ritmo profano”. Com essa “desacramentalização” da melodia litúrgica, a letra sacra tornou-se passível de ser acompanhada por qualquer composição musical, e então a música voltou para o Templo nem sacra nem profana, mas apenas secular. Iniciou-se o tempo da “música gospel” que, na virada do século já rompia as barreiras do mundo evangélico e alcançava também o mundo católico romano.

Esse texto não tem o menor objetivo de fazer sequer uma micro-história da hinologia. Meu único objetivo é instigar a discussão acerca de um tema que me parece ser sui generis, afinal eu nunca conheci uma pessoa sequer que seja favorável à atual música na Igreja. É unânime, todos os cristãos detestam “o carinha da bateria” ou “a irmã do violão” que começa a solar quando o pastor começa a orar. No entanto, todos os pastores são favoráveis ao “worship”, e aqueles que ainda não o implantaram em suas igrejas, contam os dias para que essa decisão seja aprovada em ata. Temos aqui um mistério. Por que as Igrejas não realizam uma reforma liturgica e voltam a adorar a Deus com a Música (arte) ao invés do “louvor” moderno?

Seria loucura de minha parte imaginar que aqui, em frente ao computador, seja possível utilizar minha própria história de vida como cristão evangélico para responder a essa indagação. Tenho estudado hinologia e pesquisado sobre a utilização da música no culto cristão, mas isso também não me dá competência para alcançar uma resposta satisfatória. Por outro lado o texto ficaria sem sentido se simplesmente acabasse aqui, após tão breve explanação de um problema que o leitor certamente já conhece. Portanto…

É possível ver sem muito esforço que há hoje, no mundo americano (de norte a sul), uma identificação natural entre Igrejas Tradicionais e Igrejas Modernas. Na linguagem técnica existem diversas expressões bonitas para essa aglutinação eclesiástica — prefiro deixar assim mesmo porque facilita nossa análise que não é de forma alguma acadêmica. Igrejas presbiterianas, batistas, metodistas e pentecostais (independentes ou não) tem se identificado umas com as outras pelo quesito modernidade: um grupo quer fugir da modernidade, outro quer entrar de cabeça nela. Nesse cenário tem sido cada vez mais comum pregadores batistas pregando em igrejas independentes, pastores presbiterianos sendo convidados a pregar para o público pentecostal, assembleianos pregando a tradicionais etc. Esse fato é importantíssimo pois as igrejas advindas da Reforma Protestante tem como principal característica o sermão. De batistas fundamentalistas norte-americanos, passando por metodistas e chegando aos carismáticos, a pregação é o elemento central de todo culto evangélico. Essa união interdenominacional traz então, em si mesma, um porquê. Para mim, esse porquê é claro: a percepção de que a modernidade na Igreja chegou a um patamar crítico.

Finalizo lembrando que a Igreja protestante nasceu de um momento assim, de identificação do abandono da ortodoxia e a necessidade do retorno às origens. Nada melhor para essa igreja que um novo retorno, e assim como no XVI tudo começou “pelas beiradas”, hoje poderia muito bem servir de ponto para novas disputationes a hinologia.

Termino com o canto de vitória em meio à batalha, entoado pelo reformador:

Sim, que a palavra ficará
Sabemos com certeza
E nada nos assustará
Com Cristo por defesa

Se temos de perder
Os filhos, bens, mulher
Embora a vida vá
Por nós Jesus está
E dar-nos-á seu Reino.

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