A chata literatura brasileira

Um dos maiores consensos entre nossos ex-estudantes é o de que Machado de Assis é muito chato. Esse adágio brasileiro é fruto do modernismo também brasileiro, que diferentemente do movimento artístico em outros países, não apenas agiu como um manifesto, mas exéquias da construção de uma identidade nacional iniciada nos primeiros anos do século XIX com a Missão Artística Francesa, grupo vindo para cá com a missão de dar ao Brasil Colônia uma cara própria. Arquitetos, gravuristas, pintores e intelectuais de elevado respeito no cenário europeu, traziam para o Brasil a capacidade de construção de uma identidade após análise da realidade local. Homens como Debret, Ferrez, Taunay e Pradier não tinham como objetivo europeizar a Terra brasilis, vinham porém entender o que aqui se fazia presente mas ainda desorganizado, amorfo. No fim do mesmo século, o processo de construção de nossa identidade nacional se completava com a organização dos símbolos nacionais, todos naturalmente relacionados a símbolos d’além mar, uma vez que ali estavam a nossa origem política e artística. 

“[…]até mesmo a bandeira nacional, seguia ostentando seus vínculos com a tradição imperial: o verde, cor heráldica da Casa Real Portuguesa de Bragança; o amarelo, cor da Casa Imperial Austríaca de Habsburgo. Além disso o desenho republicano reaproveitou o losango da bandeira imperial, apenas retirando o brasão monárquico com as armas imperiais aplicada e introduzindo o lema positivista de “Ordem e Progresso”.1

Toda a construção se utilizou de raízes indígenas, caboclas, africanas e europeias; matas, pássaros, índios e cortes. Mas nada disso foi considerado no modernismo brasileiro, que antes viu a necessidade antropófaga de devorar tudo o que estava posto sobre a mesa e trazer à luz um algo novo. Essa ideia não apenas zerou o Brasil de suas produções já realizadas, como instituiu a ideia de que tudo o que havia sido produzido até então era antiquado e injusto. O país que contava então com quatro séculos de história e autodescobrimento, passou a ser mais uma vez redescoberto por um grupo de [re]construtores da República, que tinham como tijolo e cimento a si mesmos. Assim, em uma busca não de encontrar a identidade brasileira — à semelhança da Missão Artística — mas de criar uma identidade, o modernismo brasileiro em uma antigênese fez da luz trevas, e da Terra uma camada sem forma e vazia. No momento seguinte, fez-se nova luz por meio de um grupo de niilistas que, não obstante o vazio interior se viam capazes de verbalizar um cosmos verde e amarelo.

Essa destruição e construção veio munida em seu âmago do conceito de justiça social dos liberais franceses, fato que evidencia que desprezível não era o europeu, mas apenas a corte europeia. Negaram Lebreton mas abraçaram Robespierre numa declamação explícita de que viessem da França todos os desajustados pois aqui reinava o caos e se avizinhava uma nova República fraterna. Tal abandono do louvável não poderia legar ao Brasil fruto diferente do que colhemos no último século, poesia livre de métrica, música livre do divino e a morte do teatro, substituído pela pornochanchada que — essa sim! –, era brasileira pura. Morra Racine, viva Silvio de Abreu.

Seguindo a luz em Fernando Pessoa na Poesia de Alberto Caeiro:

O mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo2

ajamos com a realidade posta diante de nós. É mister um salto temporal na vida de cada um de nós por sobre o século XX, e em pouso bebamos corajosamente como os valentes de Gedeão das águas cristalinas e purificadoras de Machado de Assis, José de Alencar, Aluísio Azevedo, Tomás Antônio de Gonzaga e todos os outros que tiveram a graça de erguer muros antes da chegada dos antropófagos de 1920.


1 SCWARCZ. L .M. STARLING. H. M. Brasil: uma biografia. Companhia das Letras. São Paulo, 2015.

2 PESSOA. F. Poesia completa de Alberto Caeiro. Companhia das Letras. São Paulo, 2005.

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