Os dessabedores da República

Nicholas Poussin

 

O Governo Bolsonaro lidera seus intelectuais, por isso tem morte certa e, atualmente, assiste seus inimigos tirarem na sorte quem dará o golpe de misericórdia, sagrando-se vencedor do “negacionista” que enfiou o Brasil na maior crise inflacionária desde a redemocratização. Episódios assim, na política, servem para apontar os personagens que surgirão nos anos seguintes como líderes eleitorais. É propício relembrar que, no episódio do impeachment de Dilma Roussef, coube a Bruno Araújo anunciar o 342º voto que garantiu o afastamento da inapta “mãe do PAC”. Hoje, Bruno Araújo é presidente nacional do Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB.

Quando os homens de ação lideram os homens de pensamento, não há outro fim possível que não a derrota dos reis que dominam os conselheiros. O rei Saul atentava contra a vida de Davi, mesmo sendo o jovem músico a ferramenta de Deus para lhe afastar o demônio. Morreu em morte desgraçada, causada pelas próprias mãos. O mesmo Davi, já reinando sobre Israel, se via perseguido por Absalão e ficou aterrorizado ao saber que seu inimigo estava sendo aconselhado pelo grande Aitofel (II Sm 15); assim, ao invés de orar a Deus pedindo o fracasso da ação do inimigo, rogou que o conselho do sábio fosse ignorado. Venceu e prefigurou o Rei dos reis.

É comum dos ignorantes não apenas o desconhecimento que lhe torna merecedor de adjetivo tão cotidiano nosso, comungam também os boçais da ignorância do dessaber do perigo da ignorância. Não apenas não sabem mas desconhecem que não sabem e que o saber é bom. Esses amantes do opróbrio trazem para perto de si todos os que podem ajudá-los e, em seguida, corroem-lhes as ideias transformando-os em mestres da arte do possível. Acontece que o mal de se ater ao possível é mal abrangente, toma todo o ser de suas vítimas; e do tipo pestilento, como a lepra que incendeia a alma e pega quem perto se lhe apresenta.

— Na minha família, sempre tivemos nojo de lázaros… Sou o primeiro… O senhor nem imagina… Vivi muitos anos meio desconfiado… A ninguém contei o caso… De repente, arrebentou o mal fora. Já não era mais possível enganar nem a um cego… Ah! meu Deus, quanto tenho sofrido!…
— Então para que quer ver o médico?
— Só para uma coisa… Saber pelos livros que ele tem lido e pelo conhecimento das moléstias, se isto pega…1

Pega, e como pega, meu pobre morfético! Pega e se alastra até transformar os arredores em um vale de leprosos. Fazer bem nesse caso é afastar o leproso, e em seguida, tratá-lo. Mas no Brasil o leproso é rei. À semelhança de Nabucodonosor, pode estar de quatro pastando, mas pasta como rei, um jegue excelso que leva a boca ao mato sem deixar cair a coroa – ou a faixa. Quem vê, exclama: “Lá vai a bela besta! E como orneja!”. Esse cenário bestial é o que se vê no Brasil hoje, com o Governo Bolsonaro trazendo para perto de si Augusto Nunes, Constantino, Fiuza, Ana Paula… apenas para fazê-los anunciar tudo o que o próprio Bolsonaro já anunciava! É a ventriloquização do jornalismo, onde o Governo busca seus Robertos Campos, seus Nelsons Rodrigues, seus Paulos Francis… e transforma-os todos em assessores de imprensa, que mesmo depois de uma derrota mortal como a do 8 de Setembro, precisam apagar de suas redes sociais até mesmo os muxoxos expressos em poucos caracteres. Esse jornalistas poderiam tentar salvar o governo devolvendo ao Palácio do Planalto o briefing de quatro estrelas, fazendo voltar a folha de papel com a proposta de notícia encomendada, rasurada, e escrito no verso: “Há pouco leite no país. É preciso entregá-lo cedo”2.

Mas não devolvem o erro ao remetente, antes lhe tomam da arte e levam para o estúdio, onde se tornam todos artistas da arte citada acima, a do possível. Seria tal arte a oitava, ainda não clássica apenas por falta de tempo? Seria o grande Otto Eduard Leopold von Bismarck seu patrono? Espero morrer sem saber e não viver o suficiente que me permita ver fundada a escola burke-bismarckiana de política brasileira, fazendo de nossa década de 20 um ajambramento da década de 20 do século passado, onde nossos artistas intentavam, no festival de antropofagia dos brasileiros que tiravam férias em Paris, criar o brasileiro puro-sangue, sem DNA europeu. Ironia das ironias, hoje quem tenta apenas o possível é justamente quem foi às urnas buscando o impossível, acabar com a velha e eterna política fisiológica brasileira.

Tal cenário não pode nos fazer crer que será o Brasil, justamente esse Brasil, que romperá com as leis da vida sobre a Terra e inaugurará e Era Vitoriosa dos Imbecis. Por óbvio veremos imperar a lei da repetição salomônica, com o Palácio Imbecilizador matando qualquer possibilidade de que um bom conselho se faça do lado esquerdo da Praça dos Três Poderes, nos impedindo assim de ver algo novo debaixo do céu azul de Brasília.

Infelizmente os bobos do lado de lá não dormem, antes, afastados dos cargos podem se ocupar inteiramente do poder. Essa regrinha básica do exercício do poder não foi apreendida do Arte da Guerra que mofa no criado-mudo dos aposentos presidenciais – a não ser que esteja sendo aplicado pelo maquiador na venda de seus produtos pelo Instagram, ao menos aí teríamos alguém fazendo uso do livro. Em uma República, quem detém os cargos não necessariamente detém o poder; pelo contrário, na maioria das vezes o estado inchado de burocratas impede que os governantes tenham tempo para ordenar, sendo totalmente absorvidos pela tarefa de fazer parecer. Nessa realidade democrática, quem está afastado dos cargos se organiza, cerca-se de conselhos e estratagemas são elaborados em plena luz do dia e, quando os assentados dão por conta, vêm-se em problemas de tamanho vulto que, cercados por imbecis de todos os lados, precisam recorrer justamente aos inimigos para tirarem-lhes dos labirintos.

Onde estavam Ciro Nogueira, Fabio Faria e Valdemar Costa Neto no dia 8? Se você bem reparou, caro eleitor, já na antevéspera do 7 de Setembro todo o centrão best-friend-forever de Jair Bolsonaro tinha dado no pé. Voltaram para suas bases? Para os sítios atibaienses? Estariam confraternizando nas Saunas de Pedro Botelho… Não sei, só sei que nem o Cerrado estava no cerrado, por aqui só ficaram os miseráveis brasileiros que vieram de todos os cantos do país para “defender nosso amado presidente que levou uma facada por nós”. E nesse não ser político os seres mais pútridos da velha política saíram de suas tumbas. Mas sejamos justos que nem aos secretários do cramunhão devemos faltar com a justiça, sabedores que somos de que o próprio Mestre lhes permitiu a vara de porcos. O escabroso não chegou em Brasília batendo suas asas de morcego, longe disso veio planando no estofado de couro daquele que voa sem bater asas, mais conhecido como avião da FAB.

A chegada de Michel Temer na Capital Federal se deu para solucionar um problema que Ciro Nogueira, o Articulador-geral da República, não conseguiria resolver – e olha que o político piauiense resolveu pendenga do tamanho de uma nomeação de Ministro Supremo. Ademais, o governo que trouxe jornalistas da grande mídia para resolver os problemas que jornalistas da direita não poderiam resolver… trouxe anônimos de rede social para resolver o que militantes virtuais de carne e osso não poderiam resolver… trocou até mesmo a composição popular do cercadinho por cabos eleitores que entoam músicas da velha política coronelista como “Bolsonaro é meu amigo; Mexeu com ele, mexeu comigo”… esse governo sabe, do muito pouco que sabe, que está cercado por imbecis vendidos que não tem a mínima ideia de como tirar o Brasil da lama moral em que se meteu desde o fim do Império, e nesse desalento invoca das profundezas tudo aquilo que 57 milhões de brasileiros exorcizaram em 2018, obrigando-nos a acordar no dia 14 de setembro de 2021 e assistir um vídeo onde os donos do poder almoçam alegremente em um restaurante luxuoso de São Paulo, e entre gracejos bebericam um belo vinho tinto servido por garçons que almoçam macarrão com extrato porque o arroz está custando R$ 25.

“Que Deus tenha misericórdia dessa nação” – Eduardo Cunha, ex-deputado federal pelo Rio de Janeiro, condenado a mais de 24 anos de prisão pelos crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e evasão de divisas. Esta frase foi citada por Cunha na sessão que cassou a presidência de Dilma Rousseff, a mesma sessão que serviu de palco para Bruno Araújo.


1 Inocência, de Alfredo d’Escragnolle Taunay, Cap. XVII “O Morfético”.
2 Morte do leiteiro. Carlos Drummond de Andrade.

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