Em seu livro “Considerações sobre o governo representativo”, o filósofo inglês John Stuart Mill pergunta:

“Deve o membro do parlamento ficar sujeito às instruções do seu eleitorado? Deve ser órgão dos sentimentos dele próprio ou daquele?”

 

Na avaliação que se segue (cap. XII), o autor demonstra que não há a “escolha certa”, antes é preciso obedecer ao regime escolhido por cada país, por cada povo. No caso de nações onde o político é nada mais que um delegado do eleitor, o eleito é obrigado a simplesmente representar a vontade de quem o elegeu; no caso de repúblicas que investem de autoridade os eleitos, estes podem tomar medidas impopulares obedecendo não à voz do povo mas sim sua própria decisão pessoal.

No Brasil é essa a regra vigente. Seguindo a Constituição que diz em parágrafo único “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos…”, o brasileiro não apenas reveste seus eleitos de poder como o faz com prazer seguido de alívio, como quem terceiriza um carregador para levar uma pesada cruz que trazia nas costas.

Para um britânico como Mill, falar sobre representatividade na política é ação que nasce da mente de alguém que vive em um continente familiarizado com a aristocracia, alguém que vê como natural um povo ter representantes amados e ungidos por Deus e pelo povo à semelhança dos reis em Israel (ungidos pelos profetas e abençoados em procissão nas ruas pelo povo) ou dos faraós no Egito (poetas, gênios e guerreiros admirados pelo povo) ou imperadores na civilização chinesa (temidos e divinizados diante dos populares). Em suma, um regime aristocrático tem por natural a aceitação da administração profissionalizada; o exercício da governança sendo executado por alguém com capacidade superior voltada àquela tarefa.

Por aqui é diferente, por aqui o governante sempre foi odiado por ser burguês e cobrado por ser rico. Desde a relação da primeira geração de brasileiros para com os governadores portugueses, que mal pisavam o solo brasileiro e já eram vistos como membros da coroa que vinham atrapalhar as delícias gozadas pelos náufragos que aqui ficavam e se casavam com as filhas dos pajés; passando pelos trabalhadores das fazendas de café (escravos ou não) que viam na pessoa de painho o homem que devia desenvolver a fazenda mas que nas revoltas era o primeiro que devia ter a cabeça separada do pescoço e chegando aos parlamentares atuais, que são eleitos mesmo sendo atores pornôs porém cobrados como se fossem cientistas sociais.

Assim, se no império britânico de John S. Mill há naturalidade em se ver representado por Deus na pessoa do líder político, no Brasil foi o autoritarismo de políticos messiânicos que forjaram a participação popular na eleição de seus líderes.

Na biografia “Lacerda: A virtude da polêmica”, o jornalista Lucas Berlanza descreve com perfeição nossa formação democrática:

Em países como o Brasil, formas autoritárias e antiliberais capitanearam a modernização; Vargas e sua plataforma politicamente fechada e economicamente estatizantes construíram o Brasil moderno, mas inseriram nele o DNA de suas máculas.

O que vemos no Brasil 2020 é um povo com DNA varguista afetado por uma panaceia votante, onde o presidente da república é cobrado para que feche o Congresso e convoque o Exército e, ao mesmo tempo, recebe ordens dos eleitores com relação à quem deve [e não deve] ser nomeado secretário ou ministro. O eleitor brasileiro sonha com um totalitário porém democrático, da mesma forma que uma solteirona sonha com um namorado safado porém fiel.

Falta a confiança na Providência e na capacidade, sobra cobrança para que se obedeça ao eleitor.

 

Estamos vivendo nos últimos dias a polêmica sobre a necessidade de intervenção estatal na cultura nacional, seguida da aparente preferência de Jair Bolsonaro em colocar a atriz global Regina Duarte no cargo deixado vago por Roberto Alvim. Nesse episódio tivemos um festim de autoritarismo e votacionismo, com eleitores dizendo o que Bolsonaro deveria fazer e enquetes nas redes sociais definindo quem deveria ser o próximo Secretário da Cultura.

Nem tão mal assim, o que veio agora é pior: parte do eleitorado está nas redes sociais tentando calar a discussão sobre fomento estatal na cultura, alegam que quem decide isso é o presidente. Ele paga se quiser, nomeia quem quer e ninguém pode sequer discutir sobre essas questões.

O eleitor brasileiro precisa aprender que o Presidente é apenas um líder e que em uma república quem muda o rumo do país é o povo. Deixem o homem trabalhar, mas discutam sobre as estruturas desse país e que rumo queremos tomar.

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