Do ofício da Arte

É espantosa a estratégia da Arte. Dentre suas ferramentas, a Literatura é apresentada traiçoeira. O que a Pintura não faz, e a Arquitetura não conduz, a Literatura Dança, forçando o homem a consumir um passo de cada vez, em parte. O sábio entendeu-lhe o processo: para falar uma palavra é necessário unir letra por letra, construir sílaba por sílaba, e pronunciar uma palavra de cada vez, a qual é absorvida pelo ouvinte que necessariamente precisa saber calar cada som à medida em que é anunciado, e transportá-lo à memória dando lugar ao próximo, e ao próximo, e… ao todo é dado acesso. A Literatura é assim, pensamento escrito que, apresentando-se em bloco, de uma única vez, não pode ser absorvido ainda que tomado todo nas mãos do ansioso leitor que, livro-em-mão, o detém já desde a primeira oração como quem pode bater no peito e dizer “mais um que li, enfim”. Mas não leu, ainda não leu. Para ler, a Arte força um périplo, uma via crucis que guarda no fim vida, mas não antes da morte alcançada passo a passo, oração a oração, palavra a palavra para entregar o que prometeu. A Dona só entrega o prêmio se consumida e digerida, forçando retorno de cada oração não compreendida; quem está no Caminho tem de andar consciente, chamou a isso “culto racional” o apóstolo das gentes.

Estratégia ousada, mas que não é utilizada na Pintura. Se o artista tem de construir o painel uma pincelada por vez, quem o vê pega o todo e jamais pode ser tido como não tendo consumido por não ter reparado que, debaixo da balaustrada semiocultava-se a cacatua. Quem viu, viu. Imagina a Arquitetura então, construída inevitavelmente tijolo a tijolo, base, estrutura e coluna. O abrigado não tem de entrar pela porta e sentir cada tijolo, pesar o chão para deitar e contemplar o teto: é bem-vindo e descansa do sol e da chuva seja pobre ou dileto.

Literatura é Dança grafada. É moça em movimento que prende o olhar de quem vê, e só revela o próximo centímetro de seu corpo se o espectador não piscando, acompanhá-la. E não apenas deleita a letra, a pele, mas o movimento mesmo surge como graça da Arte que faz-se, n´ela, prazer adicional e inconteste. Não é assim com o texto? Não é necessário letra por vez, parágrafo por parágrafo? E no fim algo que não está lá — não em tinta — não obstante sacramenta-se na mente, ideia que se fixa não sei de onde vinda, mas no fim o texto que fica: permanente.

Naquela corporificação de tudo e de todos, os gregos chamavam-na Atena. Nós, porém, sabemos que, no fim, não somos nós que a personificamos, antes é ela, Arte, quem incorpora, não a Si, não a nós, mas o Movimento em nós: Poema.

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