Em busca da realidade

Qualquer brasileiro que esteja minimamente ciente do que se passa na sociedade brasileira ao longo do ano corrente, ciente está de que vivemos mais uma vez o momento intitulado aquele “que definirá o futuro da nação”: a eleição presidencial. Essa relação não é exclusiva da República, nos impérios ao longo dos séculos deste mundo mau e cruel os homens reuniam-se em torno das festividades de coroação, todos crentes de que viviam o início de um novo tempo. Sendo a vida humana sobre a Terra marcada por ciclos, não é estranho ver o homem sendo atraído pela ideia de que recomeços cíclicos são promissores, afinal é essa a sensação natural que temos ao amanhecer – início do nosso menor ciclo, o dia –, a alegria com a chegada da primavera e do verão, as festas de aniversário e ano-novo e até mesmo ciclos não periódicos como um novo emprego ou o nascimento de mais um filho. Todos esses eventos anunciam o recomeço.

No processo democrático que vivemos, o ciclo eleitoral já se tornou chato e tenho certeza que isso se dá principalmente por duas razões: prazo e efetividade. Novas eleições a cada dois anos é muito cansativo. Ao longo da vida, um eleitor brasileiro que chegar aos 60 anos terá passado por nada menos que 20 eleições (considerando que se torna eleitor aos 18), sendo uma dezena delas majoritárias. Alguém pode acreditar que há um brasileiro resiliente a ponto de ter votado no Collor em 1990, e até hoje mantenha o ânimo ao ver chegar a “festa da democracia”? É triste demais olhar para trás e ver a sequência Collor, FHC1, FHC2, Lula1, Lula2, Dilma1, Dilma2, Bolsonaro… e ainda ter ânimo para se arrumar e ir à tal festa (no domingo! pela manhã!). Já o segundo fator, a efetividade, é impiedoso porque daí já não se fala mais da quantidade, mas da qualidade. Se a breve sequência de cinco nomes ao longo de oito eleições presidenciais já é numericamente cansativa, que diremos pois ao analisarmos as mudanças de realidade causadas por ter sido aquele o vencedor, e não outro? Se o estímulo ao voto pelo início de um novo ciclo fosse a eficácia do mandato anterior, a Democracia teria ido a óbito ao fim do primeiro ciclo.

Porém, temos aqui uma disparidade entre teoria e prática. A Ciência Política não dá conta dos acidentes democráticos pois o que mais se vê hoje, no Brasil, são eleitores com mais de 50 anos de idade – portanto, 30 anos vivendo como eleitor –, todos eles animados com a Eleição Presidencial 2022. Animados no sentido literal, animatio, dotados de movimento, movidos por… estão em grande parte movidos pela alegria, esperança, medo, agitação e até pânico. Como pode o marasmo político-social brasileiro ainda animar, depois de mais de três décadas de redemocratização insossa como a brasileira? Bem, aí temos um mistério-misterioso, um mistério cujo ânimo de quem se põe a desvendá-lo já é por si um mistério, afinal o que alguém tem na cabeça para querer perder tempo tentando entender a cumbuca que é a democracia brasileira? Mas enfim… cada mania com seu doido. O que eu sei é que, ao olhar para essa quebra de lógica entre theoria e práxis que estamos vivendo, onde temos todas as razões para não nos envolvermos de forma alguma com a eleição presidencial mas, não obstante, estamos (como nação) dedicando todas as energias à festa do dia dois de outubro, só posso encontrar o ponto arquimédico ao voltar meu olhar para o início do processo, e ali me colocar como um observador distante, perscrutando o contato entre os sujeitos da história: eleitor e Brasil.

Minha proposta de teoria e prática é certeira, sem abandono da modéstia pois é uma constatação bem simples e se livra do erro por sua própria despretensão: a política brasileira é desanimadora mas o brasileiro está animado com a política brasileira. O grande desafio é saber onde encontraremos a fissura para instalar nossa alavanca e, levantando essa montanha, podermos espiar a loucura na qual 2022 está assentado. Avanço pois.

Realidade, eis o ponto. Eis a fissura. É aqui que se situa a rachadura responsável por realizar o irrealizável, a falha que permite que aquilo que não possa ser, apresente sua aparência de realidade.

 

“A inteligência tende a se manter no plano das puras ideias ou no plano dos puros fatos. Na verdade, o que unicamente seria digno de absorver a atenção é o fato iluminado por uma ideia; ou seja, a ideia encarnada no fato. Todo o espírito das ciências reside nisso.” – Jean Guiton

 

O que o filósofo francês tenta ensinar a seu público não é fácil, talvez seja a ideia mais difícil de se absorver na filosofia, a de que o real não é o táctil, mas o que dá origem a este. Sendo o mundo vivido pelos homens na materialidade, não é possível conceber um kosmos onde a origem seja ele mesmo, pois se assim fosse haveria obrigatoriamente de existir a primeira matéria, que teria de ter vindo de uma não-matéria. Portanto, a filosofia sempre entendeu, desde os tempos em que seu exercício estava restrito ao campo teológico, que o que se vê é feito daquilo que não se vê (cf. Hb 11.3), o que consequentemente levou os filósofos gregos a constatarem que, em uma escala de realidade, o que é invisível é mais real do que o que é visível, pois aquele dá existência a este. Daí os platônicos passarem a chamar o mundo das causas invisíveis de real-real, e a matéria de real.

Guiton quer voltar a atenção de seus alunos para a realidade, por isso diz a eles que os objetos em sua frente não merecem toda a atenção, sabe que esse erro de foco acarretará em ocultação da realidade-verdadeira, aquilo que Santo Agostinho chamou de “a realidade verdadeira e suma”1. O único objeto digno de atenção é “o fato iluminado por uma ideia”, a “ideia encarnada no fato”. Fatos desprovidos de ideias não apenas não são dignos de serem realizados, como nem mesmo merecem ser avaliados.

Esse é o presente de nossa História, um tempo que entrará para a eternidade indignamente; vivemos a época onde as ações e pensamentos giram em torno de fatos (portanto, concretos) desprovidos de qualquer base substancial. Veja, o filósofo não diz que aquilo que é desprovido de substância não existe. Existe, mas é indigno. 2022 é real, só não é a realidade-verdadeira pois é um ano absolutamente vazio de essência.

 

Voltando o olhar para a leitura sugerida no início do texto, do divórcio entre teoria e prática em nossa sociedade atual, entendemos o porque de termos uma impossibilidade realizada diante de nossos olhos: fato indigno. Uma palavra perfeita para definir nossa realidade pode ser pinçada do vocabulário medieval: simulacro (lt. simulacrum), uma imitação, semelhança. O que estamos vivendo parece realidade, você pode até tocar e analisar, mas tudo o que concluirá será semelhante a uma conclusão, nada mais. É de outro grande autor brasileiro a frase “não há nada mais falso do que a imitação da verdade”, sim, é isso mesmo, Gustavo Corção.

Dou-me por satisfeito, o diagnóstico está aí, não é preciso continuar a investigação. Fato posto, causa encontrada, resta apenas a sugestão da esperança para que o texto não termine nesse vale de lágrimas sem sequer vislumbrar um monte para o qual possamos fugir em busca de socorro tal qual o salmista2. A resposta, não poderia encontrá-la em lugar melhor que no santo abrigo do doutor Agostinho de Hipona, em seu diálogo com Evódio3:

Agostinho – Qual dessas três realidades (existir, viver e entender) parece a ti a mais excelente?

Evódio – O entender.

Agostinho – Por que te parece assim?

Evódio – Por serem três as realidades: o ser, o viver e o entender. É verdade que a pedra existe e o animal vive. Contudo, ao que me parece, a pedra não vive. Nem o animal entende. Entretanto, estou certíssimo de que o ser que entende possui também a existência e a vida. É porque não hesito em dizer: o ser que possui essas três realidades é melhor do que aquele que não possui senão uma ou duas delas. Porque, com efeito, o ser vivo por certo também existe, mas não se segue daí que entenda. Tal é, como penso, a vida dos animais. Por outro lado, o que existe não possui necessariamente a vida e a inteligência. Posso afirmar, por exemplo, que um cadáver existe. Ninguém, porém, dirá que vive. Ora, o que não vive, muito menos entende.

 

Que assim como o aluno do doutor da Igreja aprendeu, nós também aprendamos: é melhor entender, pois só entendendo podemos viver uma vida humana abrigados na Verdade, único lugar onde quem olha, vê de fato. Todos aqueles que querem entender o que está se passando no Brasil precisam forçosamente se distanciar do simulacro de realidade apresentado nas redes-sociais e na mídia; a essência não está lá. O Brasil visível diante de nossos olhos é o simulacro do Brasil, nosso País mesmo está revelado nas crônicas do Nelson e do Gullar, nos contos do Bandeira e do Drummond, na História dos Oliveiras e do Capistrano, na filosofia do Farias Brito e na análise das ideias perpetuada por João Camilo. Todos os analistas do Brasil atual estão alheios à Verdade, e produzem todos os dias toneladas de um troço que parece o Brasil.

Saia das redes sociais, suba o monte, olhe para o pôr-do-sol e você verá.


1 AGOSTINHO. O livre-arbítrio. Livro III, XV, 39.
2 Salmos 24.
3 Op. Cit., Livro I, III, 7.

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